A infância não é fácil pra ninguém. Pena que a gente só repare nisso muito tempo depois que ela ter ido embora. Só a pouco entendi porque ganhava tantos presentes da mãe. Ela diz que achava que eu passava tempo demais brincando em casa e os brinquedos ajudavam a me sentir menos sozinho. Não a retruquei, mas com certeza os brinquedos faziam com que ela se sentisse menos culpada por deixar seu filho por ai enquanto trabalhava. Mas eu nunca reclamei, acho que até entendia essas coisas por parte dela, meio inconsciente, mas entendia. Ela sempre convidava outras crianças que eu nem conhecia pra irem a nossa casa ou me levava a casas de gente que eu não sabia quem era para fazer amigos.
O único caso avesso era o menino japonês da família vizinha. Marco, filho de médico, cheio de brinquedos modernos, videogames legais e muitas horas de atividades preenchidas com estudos, curso de línguas, aula de música, etc, etc. Sua mãe não era japonesa, era uma senhora loira muito elegante chamada Ana, eu pensava que era ela quem controlava a vida fora da escola particular de seus dois filhos. Eu era convidado frequentemente para brincar com ele das 17h15 as 18h15, nunca ultrapassava um tempo maior que esse. Esse guri se parecia muito comigo, éramos os gordinhos da turma - ou apenas eu era o gordinho da turma que parecia com japonês porque as bochechas apertavam os olhos. Gostava muito dele, mesmo não lembrando de nada de afinidade alem da rua em que morávamos, das fitas de videogame e – é claro, dos GIJOE. Depois que minha família se mudou da rua, nosso contato se resumia a minha caminhada até sua casa para trocar fitas de nintendinho e as vezes nos encontrávamos para jogar futebol no campinho de futebol que ficava na casa de outros filhos de médicos japoneses. Eu e marco éramos os últimos meninos que eram escolhidos para as brincadeiras, éramos os “café com leite” da turma, talvez até por isso que andávamos juntos.
Não lembro quando foi a ultima vez que o vi. Lembro apenas da ultima vez em que fui a sua casa emprestar uma fita de Nintendo, em 1994 (ou será 1995?). Já não morávamos perto, eu andava com outra turma, ele estudava em uma escola particular num canto da cidade, eu no Estadual Arnaldo Busato. Em 1996 fui para o CEFET em Pato Branco e sua família se mudou para uma destas cidades do norte com muitos japoneses, londrina, talvez Maringá e nunca mais nos falamos.
A ultima noticia que soube dele acho que foi em 1997, Marco havia se suicidado, se inforcou com a corda do kimono de judô. Não sei o que houve com ele para tal coisa, me disseram que ele sofria muita pressão familiar. A minha memória trata de lembrar dos pais dele como pessoas exemplares, o pai principalmente. Ele me tratou da bronquite durante anos, curada depois de milhões de inalações e varias internações. Se algum dia, ele chegou a mencionar algo sobre como se sentia, não lembro, desculpe, cara.
Ninguém pensa que as crianças sofrem de verdade, ninguém leva a sério quando uma criança diz que quer morrer, que vai fugir de casa porque não gosta dos pais ou porque não é feliz. Nunca ocorreu a ninguém que aquelas crianças desaparecidas, que ficavam num mural do saudoso Banestado, talvez não quisessem ser encontradas.