I
Foi o dia em que eu a vi. Queria saber que força oculta foi essa que passou e me fez tirar o relógio do bolso já que eu não consigo lembrar que horas eram. É um tipo de tique que desenvolvi em momentos de tensão, há quem morda os lábios, quem passe a língua sobre os dentes ou coce o nariz, eu encaro o relógio de bolso. Depois de tanto tempo e de todas as coisas que já havia pensado; tragédias, comedias, conversas dramáticas, encontros e mortes acidentais, eu escolhi encolher a barriga e olhar as horas. Ela caminhava do outro lado da rua, entre varias pessoas apressadas, ali estava você, ali estava eu, depois de tudo, ainda éramos nós dois. Não estava chovendo. Não estava frio. Não sei o que você fazia praticamente do lado da minha casa, enfim, eu moro ali. Encolhi a barriga, olhei as horas, me escondi atrás de um senhor de terno escuro. Você não viu, espero mesmo que você não tenha visto, não era meu melhor dia ou o meu melhor cabelo. Eu a vi e sofri com minha ulcera, minha diabete, meu mal de Parkinson, meu câncer, meu coração disléxico, meu relógio de bolso. Todas as doenças vêm à tona ao mesmo tempo. Perdi cinco anos de vida, mais ou menos uns cem maços de cigarros, se eu fumasse é claro. Os próximos passos foram duros, cegos, inconscientes, estéreos. Não, eu não olhei para trás, juro, não olhei sequer para o lado. Não havia porque olhar, nada mudaria em mim ou em você o ato de olhar (ou não olhar, caso eu esteja mentindo) para trás, mudaria? Sua bunda continua a mesma não? Um pouco caída penso eu, mas é preciso se certificar disso. O cabelo está bom, mas parece mais curto que da ultima vez. As calças, o casaco, o bom senso visual, enfim, a equação ainda está ok. Então de que adiantaria ter olhado duas vezes? Uma vez está de bom tamanho, estamos vivos babe e é isso que deveria importar. Mesmo assim encolhi os restos visuais de minha barriga ali em algum lugar entre um metro e oitenta e um e setenta e três quilos mal distribuídos e tentei guardar a hora na memória. Mas, Deus, eu a vi depois de séculos e isso basta para mim? Quando que isso, ver alguém do outro lado da rua, quando que isso me bastaria? Nem em 1995. Logo eu, tão ligado à pele, a ombros, à pélvis, você sabe. Não, não, não me transformei num psicólogo, esse tipo de gente mais interessada em analisar do que propriamente viver. Mas estou aqui escrevendo o milhar de palavras de todo santo dia e tudo o que penso neste exato momento se resume a figura daquela mulher e sobre o que ela ainda causa neste homem.
II
Olho-me no espelho, sem duvida de que estou um pouco mais velho hoje, mais velho do que deveria. Penso em coisas que eu deixei passar e perder por motivos que eu nem lembro bem. Dias que deixei de sair por preguiça; pessoas para quem não tornei a ligar; uma boa cerveja e umas boas risadas trocadas por filmes de Win Wenders que acabei nem vendo (e tantos outros); só agora descobri que gosto de Fitzgerald, de Cortázar e dos contos de Sallinger, mas não suporto Hemingway e Ginsberg (Dylan que me perdoe) e tenho de dar o braço a torcer para Al Green porque o cara tem uns três discos, mesmo que tenham capas horríveis, que são de matar. Fora essas coisas, vejo que ainda sou o mesmo, eu não mudo em nada há meses, mas tudo bem, hoje eu bem vi, nem eu nem você, ninguém aqui mudou um centímetro.
Pronto: vou sair agora e comprar um casaco novo e cortar o cabelo porque hoje eu a vi e ela estava linda, então preciso me sentir diferente, preciso me sentir mudado, preciso que você me sinta mudado. Não sei, eu simplesmente dobrei a esquina e acidentalmente uma descarga radioativa atingiu meu corpo e fez com que me transformasse num daqueles caras que tatuam os nomes de suas mulheres pelo corpo. Eles simplesmente precisam achar uma forma de demonstrar quanto estão apaixonados ou atormentados ou mudados por elas. Por conta de coisas assim que muitos rapazes acabam na Marinha; ou na lama; ou com “Rosalita” escrito no braço esquerdo. “tatuei seu nome, agora posso ter uma morte rápida e indolor?”. Deve ser assim que me sinto, como se vê-la na rua equivalesse a ir a um encontro da turma da escola e constatar que a Juliana, a menina que me deu o primeiro exemplar de um coração partido não mudou em nada nestes últimos dez anos. No fundo todas as mulheres deste mundo adoram saber que foram a grande motivadora de mudanças na vida de um homem; deve ser saboroso saber que “no mesmo dia em que você me deu o fora, comprei uma cópia de Astral Weeks e desde então só tenho andado para trás”. Aposto que acabarei o dia com mais um disco que não preciso, com um casaco novo que é longo no corpo, curto nos braços e me deixa mais desengonçado que o normal e, é claro, marcando um encontro com alguém que não quero. Sou previsível até na hora de encontrar algo para fazer e esquecer as coisas que me atormentam, enfim, algo que facilite minha existência ao longo deste dia lento. Marie, Clarie, Valerie, qualquer uma destas garotas arrancariam sem muito esforço o fantasma que ficou nos meus olhos em troca de alguns beijos, isso se eu realmente quisesse te exorcizar.
“Meu Deus, quando esse sofrimento vai acabar?”. *
*A ultima frase foi retirada de “Ekk the Cat”, um desenho cujas personagens vivem se dando mal por causa de mulheres.
Foi o dia em que eu a vi. Queria saber que força oculta foi essa que passou e me fez tirar o relógio do bolso já que eu não consigo lembrar que horas eram. É um tipo de tique que desenvolvi em momentos de tensão, há quem morda os lábios, quem passe a língua sobre os dentes ou coce o nariz, eu encaro o relógio de bolso. Depois de tanto tempo e de todas as coisas que já havia pensado; tragédias, comedias, conversas dramáticas, encontros e mortes acidentais, eu escolhi encolher a barriga e olhar as horas. Ela caminhava do outro lado da rua, entre varias pessoas apressadas, ali estava você, ali estava eu, depois de tudo, ainda éramos nós dois. Não estava chovendo. Não estava frio. Não sei o que você fazia praticamente do lado da minha casa, enfim, eu moro ali. Encolhi a barriga, olhei as horas, me escondi atrás de um senhor de terno escuro. Você não viu, espero mesmo que você não tenha visto, não era meu melhor dia ou o meu melhor cabelo. Eu a vi e sofri com minha ulcera, minha diabete, meu mal de Parkinson, meu câncer, meu coração disléxico, meu relógio de bolso. Todas as doenças vêm à tona ao mesmo tempo. Perdi cinco anos de vida, mais ou menos uns cem maços de cigarros, se eu fumasse é claro. Os próximos passos foram duros, cegos, inconscientes, estéreos. Não, eu não olhei para trás, juro, não olhei sequer para o lado. Não havia porque olhar, nada mudaria em mim ou em você o ato de olhar (ou não olhar, caso eu esteja mentindo) para trás, mudaria? Sua bunda continua a mesma não? Um pouco caída penso eu, mas é preciso se certificar disso. O cabelo está bom, mas parece mais curto que da ultima vez. As calças, o casaco, o bom senso visual, enfim, a equação ainda está ok. Então de que adiantaria ter olhado duas vezes? Uma vez está de bom tamanho, estamos vivos babe e é isso que deveria importar. Mesmo assim encolhi os restos visuais de minha barriga ali em algum lugar entre um metro e oitenta e um e setenta e três quilos mal distribuídos e tentei guardar a hora na memória. Mas, Deus, eu a vi depois de séculos e isso basta para mim? Quando que isso, ver alguém do outro lado da rua, quando que isso me bastaria? Nem em 1995. Logo eu, tão ligado à pele, a ombros, à pélvis, você sabe. Não, não, não me transformei num psicólogo, esse tipo de gente mais interessada em analisar do que propriamente viver. Mas estou aqui escrevendo o milhar de palavras de todo santo dia e tudo o que penso neste exato momento se resume a figura daquela mulher e sobre o que ela ainda causa neste homem.
II
Olho-me no espelho, sem duvida de que estou um pouco mais velho hoje, mais velho do que deveria. Penso em coisas que eu deixei passar e perder por motivos que eu nem lembro bem. Dias que deixei de sair por preguiça; pessoas para quem não tornei a ligar; uma boa cerveja e umas boas risadas trocadas por filmes de Win Wenders que acabei nem vendo (e tantos outros); só agora descobri que gosto de Fitzgerald, de Cortázar e dos contos de Sallinger, mas não suporto Hemingway e Ginsberg (Dylan que me perdoe) e tenho de dar o braço a torcer para Al Green porque o cara tem uns três discos, mesmo que tenham capas horríveis, que são de matar. Fora essas coisas, vejo que ainda sou o mesmo, eu não mudo em nada há meses, mas tudo bem, hoje eu bem vi, nem eu nem você, ninguém aqui mudou um centímetro.
Pronto: vou sair agora e comprar um casaco novo e cortar o cabelo porque hoje eu a vi e ela estava linda, então preciso me sentir diferente, preciso me sentir mudado, preciso que você me sinta mudado. Não sei, eu simplesmente dobrei a esquina e acidentalmente uma descarga radioativa atingiu meu corpo e fez com que me transformasse num daqueles caras que tatuam os nomes de suas mulheres pelo corpo. Eles simplesmente precisam achar uma forma de demonstrar quanto estão apaixonados ou atormentados ou mudados por elas. Por conta de coisas assim que muitos rapazes acabam na Marinha; ou na lama; ou com “Rosalita” escrito no braço esquerdo. “tatuei seu nome, agora posso ter uma morte rápida e indolor?”. Deve ser assim que me sinto, como se vê-la na rua equivalesse a ir a um encontro da turma da escola e constatar que a Juliana, a menina que me deu o primeiro exemplar de um coração partido não mudou em nada nestes últimos dez anos. No fundo todas as mulheres deste mundo adoram saber que foram a grande motivadora de mudanças na vida de um homem; deve ser saboroso saber que “no mesmo dia em que você me deu o fora, comprei uma cópia de Astral Weeks e desde então só tenho andado para trás”. Aposto que acabarei o dia com mais um disco que não preciso, com um casaco novo que é longo no corpo, curto nos braços e me deixa mais desengonçado que o normal e, é claro, marcando um encontro com alguém que não quero. Sou previsível até na hora de encontrar algo para fazer e esquecer as coisas que me atormentam, enfim, algo que facilite minha existência ao longo deste dia lento. Marie, Clarie, Valerie, qualquer uma destas garotas arrancariam sem muito esforço o fantasma que ficou nos meus olhos em troca de alguns beijos, isso se eu realmente quisesse te exorcizar.
“Meu Deus, quando esse sofrimento vai acabar?”. *
*A ultima frase foi retirada de “Ekk the Cat”, um desenho cujas personagens vivem se dando mal por causa de mulheres.